Relação Mente-Cérebro

Texto publicado no Livro “Transciclopedia em difusão do conhecimento / Dante Augusto Galeffi, Maria Inês Corrêa Marques, Marcílio Rocha-Ramos (organizadores). — Salvador : Quarteto, 2020”

Capítulo 75 “Relação Mente-Cérebro”

Autora: Jéssica Plácido Silva

REDES COMPLEXAS E A PROPRIEDADE EMERGENTE

Além das redes sociais que conhecemos, os conceitos de rede podem ser diversos. Neste momento, interessa-nos compreender melhor as redes complexas. Essas redes aparecem de várias formas no mundo, por exemplo, no formigueiro, no corpo humano e nos fenômenos geológicos e, também, na internet e redes de transporte.

Barabasi (BARABÁSI; OLTVAI, 2004; STROGATZ, 2001) em seu clássico trabalho chegou à conclusão de que todas as redes complexas apresentam algumas características específicas: nós e arestas, sendo que alguns nós são concentradores, chamados de hubs; efeito mundo pequeno e uma dinâmica não-linear; evoluem ao longo do tempo e apresentam características de um fenômeno criticamente auto-organizado.

O cérebro é definitivamente uma rede complexa. Os neurônios são os nós, e as sinapses, as arestas. O cérebro é descentralizado, auto-organizado e não-linear (portanto, não é hierárquico), pois não tem um comando central. O cérebro interage com outras partes do corpo humano e é extremamente robusto, o que pode ser percebido por meio da sua neuroplasticidade. Existem casos registrados na literatura de, por exemplo, um paciente que sofreu acidente e teve parte do cérebro danificada e, apesar de apresentar prejuízos cognitivos, manteve o sistema geral em funcionamento devido à reorganização da rede. (BARABÁSI; ALBERT, 1999; POWER; et al., 2011; ALMEIDA, 2008; LENT, 2008).

cérebro e suas engenhosidades

O cérebro funciona com lei de potência: os neurônios tendem a repetir as mesmas sinapses (portanto, não é aleatório). A teoria dos grafos é um modelo matemático que descreve o funcionamento das redes funcionais cerebrais. Além disso, o cérebro apresenta propriedade emergente, que é outra característica de redes complexas.

O conceito de emergência surgiu pela primeira vez em 1875, por Lewes (1875, p. 368–377), para explicar porque não é possível compreender a química por meio da física. Lewes pergunta como seria possível compreender a água, em sua complexidade e qualidade, por meio do entendimento das moléculas de hidrogênio e oxigênio. A partir disso, o autor percebe que da combinação dos agentes de um determinado sistema é possível emergir um novo sistema, que definitivamente não pode ser explicado pelo funcionamento dos seus componentes. Quando a matéria adquire um certo grau de complexidade, aparecem propriedades genuinamente novas.

Alguns autores, baseados nesse conceito de emergência, apresentam uma possibilidade filosófica conhecida por fisicismo não-reducionista, que significa que das atividades cerebrais emerge a consciência. Então, a consciência ou a mente (portanto, a experiência subjetiva e os processos cognitivos) seria uma propriedade emergente das atividades cerebrais. Assim, as atividades cerebrais trariam em si um papel causal, organizador e controlador das funções mentais. Logo, no momento em que a consciência emerge do cérebro não pode ser mais reduzida a ele. Entretanto, a conexão entre eles é muito intensa e eles estão profundamente interligados. (SANVITO, 1991)

Apesar do fisicismo não-reducionista ser uma possibilidade muito válida, apresenta alguns pontos de dúvida. Uma lacuna explicativa seria a questão: Como uma atividade cerebral (física) pode gerar uma atividade consciente (não-física)? Naquela época, Lewes não entendia como a água emergia das moléculas, porém, com o avanço da ciência, foi descoberto o mecanismo que faz isso ocorrer. Por isso, alguns fisicistas afirmam que, em breve, a ciência avançará e explicará a lacuna existente. De fato, é possível que seja só uma questão de tempo (MOREIRA-ALMEIDA, 2013; ARAUJO, 2013).

Entretanto, o professor Saulo Araújo fez um estudo e descobriu que esse tipo de argumento chamado de “materialismo promissório” existe na literatura há pelo menos 300 anos. Ou seja, há muitos anos os fisicistas-materialistas nos têm informado que falta muito pouco tempo para descobrir como um elemento físico gera um elemento não-físico. Patrícia Churchland, uma das principais expoentes e defensoras dessa tese, após 40 anos de pesquisas neurofisiológicas, informa que não sabe quanto tempo terá que esperar para resolver os problemas mais simples sobre a consciência humana (ARAUJO, 2013).

Aqui surge um outro questionamento: e se for o contrário? E se o mundo físico for uma propriedade emergente da consciência? O filósofo David Chalmers (2002) organizou essa questão no que ele chamou de “monismo”, também conhecido de “naturalismo expandido” por outros autores. Nesse conceito, a consciência poderia ser estudada como um elemento irredutível do universo, como a massa, o tempo e a onda eletromagnética. A consciência seria um elemento da natureza. É uma ideia simples: se não é possível explicar um fenômeno por meio de outros fenômenos, talvez ele seja um fenômeno irredutível a qualquer outro. A consciência, então, seria, a natureza intrínseca de uma rede complexa de entidades básicas que obedecem a um conjunto de leis específicas. O mundo físico seria uma propriedade emergente dessa rede complexa de entidades básicas (CHALMERS, 1995; TEIXEIRA, 1997).

alma e natureza

Essa concepção apresenta um argumento confortável para os físicos, pois, nesse caso, as leis físicas não precisariam de serem mudadas. Seria apenas acrescentada uma propriedade intrínseca nessas leis e, para tanto, seriam necessárias leis de ponte ou leis psicofísicas (CHALMERS, 1995; TEIXEIRA, 1997).

Evidente que as lacunas continuam existindo, seja no fisicismo não-reducionista ou no naturalismo expandido. A ideia aqui é chamar atenção para outras possibilidades filosóficas que devem ser levadas em conta no universo acadêmico-científico com seriedade e, portanto, podem ser estudadas como tal. A ciência não é materialista por definição e se a consciência pode fazer parte da Natureza, então, a ciência precisa debruçar-se sobre este fenômeno (BEAUREGARD et al., 2014).

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Rita M. C. de. Redes Neurais. In: NUSSENZVEIG, H. Moysés (org.). Complexidade e Caos. 3. ed., Rio de Janeiro: Editora UFRJ/ Copea, 2008.

ARAUJO, S. de F.. Materialism’s eternal return: recurrent patterns of materialistic explanations of mental phenomena. Archives of Clinical Psychiatry, v. 40, n. 3, p. 114–119, 2013.

BARABÁSI, A.-L.; ALBERT, R. Emergence of Scaling in Random Networks. Science, v. 286, n. 5439, p. 509–512, 15 out. 1999.

BARABÁSI, A.-L.; OLTVAI, Z. N. Network biology: understanding the cell’s functional organization. Nature Reviews Genetics, v. 5, n. 2, p. 101–113, fev. 2004.

BEAUREGARD, M. et al. Manifesto for a Post-Materialist Science. Explore: The Journal of Science and Healing, v. 10, n. 5, p. 272–274, 1 set. 2014.

CHALMERS, D. O enigma da experiência consciente, 1995. Disponível em: . Acesso em: 7 jan. 2018.

CHALMERS, D. J. Consciousness and its place in nature. In: Stich SP, Warfield TA, editors. Blackwell Guide to Philosophy of Mind. Malden: Blackwell; 2002.

LENT, Roberto. Fabricação do cérebro. In: NUSSENZVEIG, H. Moysés (org.). Complexidade e Caos. 3.ed., Rio de Janeiro: Editora UFRJ/ Copea, 2008.

LEWES, George Henry. Problems of Life and Mind. [s.l.] Osgood, 1875.

MOREIRA-ALMEIDA, A. Explorando a relação mente-cérebro: reflexões e diretrizes. Archives of Clinical Psychiatry, v. 40, n. 3, p. 105–109, 2013.

POWER, J. D. et al. Functional Network Organization of the Human Brain. Neuron, v. 72, n. 4, p. 665–678, 17 nov. 2011.

SANVITO, W. L. The brain/mind complex an epistemological approach. Arquivos de Neuro-Psiquiatria, v. 49, n. 3, p. 243–250, set. 1991.

STROGATZ, S. H. Exploring complex networks. Special Features. Disponível em: . Acesso em: 25 jul. 2018.

TEIXEIRA, J. de F. A Teoria da Consciência de David Chalmers. Psicologia USP, v. 8, n. 2, p. 109–128, 1997.


Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *